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4.10.12

O homem que apanhou de uma mandioca

Era uma noite de carnaval, e já sabemos o contexto: balbúrdia, cerveja e o inusitado.
Havia um pé de mandioca, uma pobre planta que nasceu no interior do interior, e que levava uma vida medíocre, esperando faceira pelo seu fim. Nasce da terra este falso pé de maconha. Eis o ciclo desta triste existência: Nascer da terra como iguaria perfeita para uma costela bem gorda, e na boca de um gaúcho trombudo morrer, descançando na pança do taura por três dias, para depois voltar, processada, para a terra que lhe deu vida, adubando as novas gerações.
Este é o ciclo natural. Esta é a natureza da vida deste vegetal. Uma vida tranquila, serena e já escrita. Mas sempre na vida acontece o inusitado. E neste carnaval o inusitado surgiu, para tristeza deste meu grande amigo, que vamos chamar de Pedro.
Era madrugada, o baile estava lotado. O Pedro, como de praxe, estava borracho por demais, não conseguindo andar em uma linha reta por mais de dois metros. E como desgraça pouca é bobagem, deu vontade de cagar no vivente. Porém, como disse, o baile estava lotada. Ou seja, o banheiro também estava "lotado". Mas o Pedro era um cara esperto, com espírito aventureiro, um amante da natureza e da vida livre. E então resolveu cagar no mato.
Rumou pra fora do bailão e avistou o mandiocal. Pronto. O lugar perfeito. Poderia até limpar o bodoso com um ramo de folhas verdes, no melhor estilo campeiro. Mas bah! Foi-se o xirú, tropeçando nas próprias patas. Baixou as calças e pôs-se a cagar. Tudo perfeito.
Mas o inusitado surgiu, e um pé de mandioca, indignado com a atitude do xirú cagão, que lhe respingava o caule com merda, passou uma rasteira. Bêbado, Pedro não conseguiu se desvencilhar do golpe e caiu. Caiu em cima da própria merda. Não bastando, Pedro tentou revidar, e errou o golpe. Caiu de novo. Era madrugada, o baile estava lotado, e o Pedro todo cagado.
Mas não há de ser nada, Pedro jogou as cuecas foras, limpou-se com as meias, ignorou o pé de mandioca, engoliu sua vaidade, e raciocinou: era madrugada, o baile estava lotado e ninguém iria notar.
Estava eu no banheiro descarregando litros de cerveja para recarregar o corpo com mais litros de cerveja, quando irrompeu no recinto um cheiro tenebroso, que destoava de toda catinga do ambiente. Quando fui lavar as mãos - sim, eu lavo as mãos - encontrei o Pedro com uma cara estranha. Cara de guri cagado. E ele estava. O cheiro que exalava daquele corpo empregnava no ar como dente de alho amassado, como perfuma de puta de rodoviária, como... merda. Pedro lavava as mãos, lavava a camiseta e não adiantava. Pedro estava cagado. Que merda!
Ao contrário do que pensava, não foi apenas um golpe que Pedro sofreu. Foi uma coça, uma sova, uma surra. Pedro perdeu as meias, as cuecas e mesmo assim estava repleto daquela mistura de merda e barro, nos tênis, nos joelhos, nos cotovelos. Pedro estava na merda.
E como tudo na vida, com tudo se acostuma. Até com o cheiro da merda. E fomos todos embora... com o Pedro. Agora muito mais espertos e conscientes: aquilo que se planta, colhe; aqui se faz, aqui se paga; não se mexe com quem tá quieto; aquilo que se dá à Deus, ele lhe dá em dobro... inclusive merda.
O pé de mandioca, dizem, ainda vive no mandiocal como uma alma penada a assustar os transeuntes que se arriscam a cagar no mato. Já o Pedro segue supimpa nesta vida fácil, jovial, esperto e com a pele muito vistosa, porém, ele nunca mais comeu mandioca. Por que será?

17.9.12

não tá morto quem peleia, apesar de todos urubus...

Buenas, em tempos de semana farroupilha, mesmo que o final seja trágico, vale a pena contar este causo, um tanto que verídico, e que traduz um pouco o sentimento de luta do gaúcho, que mesmo sabendo que o pior é inevitável, luta com todas as suas forças até o fim, sem se entregar, sempre valente.
A história se passa no litoral gaúcho, em épocas de carnaval, portanto de grande esbórnia etílica. Como de praxe, o xirú guasca, do qual vou preservar o nome, estava navegando em mares de cervejas, a noites e dias. Para curar a resssaca, rumou para a praia com a pândega, municiado de um isopor abarrotado de latinhas.
Lá estando, o vivente teve um aborrecimento intestinal provavelmente provocado pelo excessivo consumo do sumo de cevada, ou seja, deu vontade do índio cagar.
A vida é cruel. O índio, antes um xirú grosso e de pouco trato, era agora um sujeito estudado, e teve um sentimento ecológico de poupar a casa da mãe Iemanjá do despejo in natura do que outrora fora suas refeições (depois confessou que teve medo de ser pego cagando com as calças na mão, vai que baixa a maré bem na hora, com toda praia assistindo). Melhor tomar o rumo de casa.
E foi o que fez o xirú. A casa era pertinho da praia, pensou. Mas perto e longe é relativo. Uma coisa é andar cinco quadras sem estar necessitado, outra é andar dois quarteirões com o bucho cheio de bosta, sentindo a pressão provocada pelos baldes de cerveja borbulhando no intestino. Quem já se viu apertado, em situação semelhante, sabe bem como é, a buchada fica como um Carandirú super lotado, com tudo o que está preso querendo sair, em uma terrível pressão.
Só que o xirú era guasca, tinha sangue gaudério, e por ser gaucho enfrentou o perigo, de peito aberto e alma valente. Levantou-se, avisou a cambada e foi-se em direção a casa, sofrego, cambaleando, com o olhar fixo e a mente focada. Não houve teta suculenta ou bunda de sereia que tirasse a concentração do vivente, que saiu flutuando pela areia quente, atravessando o basalto fervilhante, cerrradito.
Mas como já disse, a vida é cruel. Tem a lei de Murphy, que diz que nada tá tão ruim que não pode ficar pior, que quando cai o pão, cai sempre com o schmier pra baixo, coisa e tal. E foi verdade.
O xirú chegou em frente ao portão da casa e.... fechado. A merda gritando por liberdade, um vulcão de bosta em plena erupção e a bosta do portão fechado. Chaveado. E a chave lá na distante praia. E agora, o que fazer?
Na hora o xirú lembrou do dito gaudério: não podemo se entrega pros home, de jeito nenhum! Isso mesmo, porque não tá morto quem peleia. E o xirú voltou rumo a praia, suando frio, troteando igual cachorro manco.
Chegou na praia, sério, reto e objetivo, sem falar uma palavra, pegou a chave e se pôs novamente rumo ao cafofo. Pobre vivente, imaginem o desespero de manter a honra limpa e intacta. Como evitar o pior? Como escapara incólume disto tudo? Não tá morto quem peleia, pensou novemente.
O caminho agora era muito maior, o sol muito mais quente, e o Carandirú muito mais borbulhante.
O olhar antes aflito, agora era de total desespero. Não podia correr, se não o bicho pegava. Não podia parar, porque o bicho também pegava. E foi-se o xirú, como uma boitatá de olhos de fogo, que deixa pelo pampa seu rastro de luz, o guasca se esgueirava pelo caminho, deixando nuvens do vapor daquela panela de pressão abarrotada de chucrute cozido e recozido pelo suco gástrico do vivente.
A cada dez passos, uma parada estratégica, para suportar a pressão. Bodoso cerrado, olhos esbugalhados, sem sequer respirar, em um total desespero. Pois não é que o xirú venceu a porfía e chegou até a frente da casa, invicto, sem sujar sua bandeira. E rompeu a primeira de três portas, acertando a chave de cara. Deus está olhado por mim, pensou, não tem como perder esta luta. Imagine, em dez opções, acertou de cara, na primeira.
Já na segunda porta, não teve tanta sorte, ou rezou pouco, vai saber. A chave certa não era a que estava na mão, tampouco era a do lado, ou a do outro lado. Vai saber. O desespero deixa a pessoa cega, e na guerra, o sujeito sempre tem que estar lúcido, sóbrio (isso era impossível, era Carnaval...)mesmo que sejas valente e destemido, só vencerá se tiveres a mente iluminada.
Viu-se então o xirú frente a frente com a Velha Senhora, que abria seus longos braços para abraçar o bravo guerreiro. O pior era inevitável, o fim estava próximo e se desenhava triste, teria que achar a chave, abrir a porta e chegar até a outra porta. Entregar-se? Jamais!!!
Sou do Sul, Deus é Gaúcho, e não podemos se entregar pros homens, de jeito nenhum, amigo e companheiro, não tá morto quem luta e quem peleia, e lutar é a alma do campeiro! Pensou o xirú: não tá morto quem peleia.
E realmente não estava, mas os urubus já rondavam a carniça e agora era manter o mínimo de dignidade possível. Jogou fora sua bandeira manchada pela derrota, limpou suas feridas, abriu mais uma gelada e retornou rumo a praia. O que é um peido pra quem tá cagado.

30.7.12

Carta de Agradecimento

Meu muito obrigado, calamaro...
ainda que tenhas o cintilante lume da estrela apagado,
a foice e o martelo escondido em memórias do meu passado...

Meu muito obrigado, calamaro...
ainda que tenhas minha esperança em lama afogado,
e feito do vermelho um singelo recuerdo do êmulo colorado...

Meu muito obrigado, calamaro...
a ti e aos teus fedegosos ministros de estado,
aos teus hematófagos senadores e aos nem tão caros deputados...

Meu muito obrigado, calamaro...
pela certeza de hoje saber que homens serão sempre homens,
e que porcos também serão homens com o poder ao seu lado...
Por isso calamaro, meu muito obrigado.

Cesar Boufleur.

19.6.12

Os Guerrilheiros da Cachaça

Certa feita, uma tropa de vadios se reuniu para uma empreitada, na provinciana e apocalíptica Novo Hamburgo: rumarem à pé ao aniversário de uma moçoila que havia se enrabichado por um tibúrcio amigo da pândega. Estavam lá todos os porcarias reunidos, em volta de muitos litros de samba e de um garrafão de vinho solito, que, num canto, mirando os bêbados com um ar pidão, parecia dizer: me bebam... me bebam... Então a orda partiu pelas ruas escuras e não muito amistosas, cantando uma canção, cuja letra simplória, por si só, traduzia o momento, “...minha mãe mandou comprar um quilinho de feijão, mas meu pai me disse assim, não esquece a cachaça não, a cachaça não...” Ao chegarem no local, sem mais vinho, sem mais samba, adentraram no recinto e foram direto saciar a sede etílica. Não houve presentes ou sequer parabéns, e em menos de meia hora não havia mais bebida, nem mais comida, nem mais festa. A cambada na refrêga com as participantes da bazófia, numa bagunça cheia de cateretê, a pedreira rolando, as cabeleiras ao vento, até que estorou um bochincho de bicudos e cabeçadas que pôs termo à festinha. Acabou a diversão? Que nada, a tropa seguiu firme, abnegada a envergar os novos e não mais solitários garrafões de vinho, que como que por acaso, surgiram, até que estes - malditos! - como uma quinta coluna, se insuflaram contra a tropa! Bastardos garrafões! Recordo-me apenas do saldo final desta porfía, na medida que me afastava do campo de luta, via pelo caminho os corpos combalidos, pela força voraz do vinho vingativo, estavam os guerreiros atirados nas calçadas, babavam, vomitavam, gritavam na luz do dia palavras de ordem.... Janelas se abriam, xingamentos, resmungos, olhares de espanto e reprovação. Seguimos embora, sem sabermos o caminho de volta, por um óbvio motivo. Esta batalha épica fez surgir a Concentration Alcoólic Club, uma primitiva sociedade secreta de guerrilheiros da cachaça, hoje muito mais de memórias do que de fatos, mas com um passado cheio de histórias... Cesar Boufleur